Theodora
Era domingo de manhã e eu estava sentada no estúdio de dança, fazendo uma pausa no meu ensaio pessoal com o professor Jeferson. Enquanto me hidratava, e limpava o suor da testa, não conseguia evitar as lembranças de dias atrás, bastava que minha mente ficasse desocupada para que eu revivesse a cena do acidente de Robert. Saber que ele havia recobrado a consciência me dava certo alívio, no entanto não tirava o peso que pairava sobre mim:
"Rob está assim por sua culpa? Meu filho nunca teria pisado naquele bairro antes de conhecer você!" — Os gritos de Ofélia iam e voltavam em minha memória.
No dia do acidente eu fui para o hospital junto com a ambulância que resgatou Robert. Por alguns instantes ele parecia saber que eu estava ali e apertou minha mão com força. Depois desapareceram com ele dentro do hospital.
Eu fiquei na sala de espera em agonia. Pedi para Lisa avisar a família dele porque eu mesma não tinha o contato dos Servantes.
Então eles chegaram e passaram por mim como um furacão, me ignorando totalmente, e foram falar diretamente com a médica. Depois, Ofélia voltou vermelha de raiva e praticamente me expulsou do hospital.
Meu pai apareceu para me buscar quase imediatamente, Lisa deve ter antecipado o que aconteceria e fez bem em organizar meu resgate porque eu estava em choque.
Robert finalmente disse que me amava e se foi sincero, havia terminado com Betina...
— Tessy, acho que eu já exigi bastante de você hoje. Vamos passar a coreografia mais uma vez e aí vai para casa descansar, ok? — o professor Jefferson explicou, me oferecendo o braço para que eu me levantasse. — Também quero ir para casa hoje, minhas filhas pediram para ir ao shopping.
— Certo.
— Olha, você não tem errado em nada, porém seu rosto anda muito tenso durante a dança e isso não é bom. O salto está ok, contudo você anda fazendo o giro com muito ímpeto e não com leveza. — Ele me deu um tapinha no ombro — Você sempre dançou de maneira delicada e elegante, não deixe que esse talento se perca.
Eu acolhi aquelas palavras e dei o meu máximo no ensaio seguinte. Fui embora para casa e encontrei toda a família de frente ao muro da nossa residência, com pincéis e tinta na mão:
— Oi pessoal, o que está acontecendo aqui? — perguntei curiosa. Eles pareciam animados.
Minha mãe se aproximou, sorridente.
— Como o reboco que o pedreiro fez em casa e aqui no muro já secou, saímos hoje cedo para comprar tintas. Já começamos a pintar.
— Pensei que fossem ao culto.
— Hoje não. Era para termos arrumado isso faz tempo, mas só agora que terminei de pagar a geladeira e a máquina de lavar — meu pai falou.
— Eu sei pai, ninguém tem culpa que perdemos tudo na enchente. Arrumar o interior da casa era prioridade — respondi.
— E agora estou trabalhando também — Lisa falou. — O que achou dessa cor? — Era um verde bandeira forte e eu gostei.
Passamos o domingo pintando a casa e só fizemos uma pausa para comer as marmitas que Lisa encomendou. Foi um dia feliz.
A noite Lisa veio até meu quarto. Eu estava arrumando minhas coisas para a manhã seguinte enquanto ouvia música no celular.
— A casa ficou bonita, não é, Lisa? Agora que rebocou e foi pintada...
— Sim, aquele velho filho da puta não pode mais ficar falando mal do lugar onde você reside!
— Lisa!
— Eu tenho raiva do Octávio Servantes! Precisa ver como ele trata mal o Cristian. Se com o Robert ele está todo cheio de dedos, é bem maldoso com o caçula. Mas o Cristian também não deixa por menos — ela sorriu, demonstrando certo orgulho do chefe.
— Octávio Servantes me parecia um senhorzinho simpático, na primeira vez que o vi — eu disse, lembrando da festa Beneficente em que fui como acompanhante do Kaique. — Ele parecia um velho filantropo do bem.
— Sério? — ela riu. — Ah, mudando de assunto, hoje de manhã, antes de você chegar, o Ector passou em frente de casa...com a namorada nova.
— Felicidades para eles.
— Tão cara de pau, Tessy, fez questão de parar para cumprimentar a mãe e apresentar a moça "sortuda" por levar o "presente de Deus". Aí, na frente da moça, ele começou a falar para nossa mãe que você se desviou e que perdeu a chance com ele.
— Ector é muito sem noção. E a mãe?
— Nem deu bola, acho que ele achou que ela ia concordar com ele! Que burro.
— Como pude namorar um cara como o Ector? Vamos Lisa, me fala!
— Sei lá, eu namorei o Ramirez lá do curso de inglês e até hoje acho que eu estava sob efeito de drogas.
Rimos.
— É quase uma raridade acertar o tiro de primeira. Acho que praticamente toda mulher já passou pela mão de um otário e não é que somos ingênuas, mas homens babacas estão em maior número. Você tem que sair pinçando os homens bons — disse Lisa.
— Talvez eles demorem mais para serem moldados. Eles vivem de maneira inconsequente por mais tempo, enquanto nós mulheres já somos responsáveis desde meninas.
— Sei lá! Tem coisas que nem Freud explica, mas quanto ao Robert? — ela perguntou. — Ele é um homem bom? Ele vale a pena?
— Eu só sei que o amo demais...
— Achei que iria correndo para o hospital assim que contei que ele despertou.
— Eu fiquei com medo — suspirei. — Fiquei imaginando o escândalo que a mãe dele poderia fazer se me visse lá...
— Não seja por isso, eu vou com você! Sabe que adoro um barraco! — Vi o olho da minha irmã brilhar.
— Nem pense nisso! Você é doida.
— O certo não é você ir lá? Estavam juntos quando tudo aconteceu...
— Eu sei! Pior que sei. — Comecei a caminhar pelo quarto — Mas não tenho emocional para enfrentar aquela família agora... talvez o próprio Robert tivesse que interferir e acho que nada disso fará bem para a recuperação dele. E… ele não me mandou nenhuma mensagem. Às vezes penso que talvez ele acabe concordando com a Dona Ofélia, que eu não trago coisas boas pra vida dele...
— Quanta bobagem, Theodora!
— Antes de tudo acontecer eu disse para ele que o esforço não valia a pena — relembrar. — Então não consigo ir. Ainda não.
— Tessy ...
— Olha Lisa, eu vou dormir — eu disse.
— Entendi o recado. — Lisa me deu um abraço, daquele jeito protetor que ela tinha comigo e então se retirou.
O quarto ficou silencioso. Eu mordi com força o lábio inferior. Eu estava tão perdida e estava me agarrando nas coisas que eram mais simples de resolver como o trabalho e os ensaios.
E apesar de estar com os pensamentos ocupados com Robert e o dilema se eu deveria ligar, visitá-lo ou simplesmente esperar na providência divina, os dias passaram rapidamente e o sábado do concurso de Mambo finalmente chegou.
O Evento foi organizado num Teatro localizado no Novo Brooklin em São Paulo no início da noite. Todos os assentos foram vendidos. Jeferson e eu estávamos de mãos dadas, na concentração com as outras duplas. Eu estava ansiosa.
— Vai dar tudo certo — disse Jefferson. — Nosso figurino ficou incrível.
Eu trajava um vestido prateado muito sensual, como era comum usarem as dançarinas de mambo. Meu salto é fino, muito alto e exige bastante equilíbrio. E Jeferson também usava uma camisa prata bem justa, por dentro da calça.
— Eu estou calma — menti. — Qual dupla está se apresentando agora?
— A trigésima quinta, somos os próximos.
Senti um frio na barriga, mas me controlei.
— Olha Tessy, seja lá qual for o resultado, já quero te agradecer por ter embarcado nessa comigo! Você é incrível.
— Tem sido uma honra, professor. — Eu também agradeci.
Então chamaram o casal trigésimo sexto. Respiramos fundo e entramos.
Antes de nos posicionarmos, lancei um olhar rápido para a plateia, mas não consegui identificar nenhum rosto, nem mesmo daqueles que eu sabia que viriam, como meus familiares.
Então fui para minha marcação e o som de Mambo Gozon de Tito Puente começou a tocar.
Dançamos com graça e beleza. A coreografia era bem marcada, com movimentos muito rápidos que mesclam sensualidade e agilidade. Os giros mais difíceis foram executados com perfeição. Quando terminamos a salva de palmas foi estrondosa. Entendi que o público havia gostado e torci para que os jurados também.
Saímos do palco rapidamente, dando lugar ao casal seguinte. A sensação de dever cumprido me dominava. Jeferson me abraçou e me agradeceu.
— Você estava incrível!
— Você também, professor.
— Bateram muitas palmas, você ouviu? Mais que nas outras duplas, estou super empolgado.
Ficamos um tempo ali, rindo como bobos, animados com o próprio desempenho.
— Depois dessa, eu preciso beber mais água — afirmou.
Me afastei e fui em direção aos bebedouros com minha garrafinha na mão. Porém algo me fez parar no caminho.
Um homem de olhar misterioso estava parado na porta dos bastidores, tinha a barba espessa, o rosto magro e trajava um terno que parecia um pouco largo para ele. Então eu o reconheci.
Era Robert.
A garrafinha de água caiu da minha mão.
— Pensei em te parabenizar pessoalmente, Tessy — ele disse.
Meu coração deu um salto quando ouvi a voz dele. Foi como uma descarga elétrica. Então, quando percebi, estava correndo na direção dele sem saber ao certo o porquê.