Capítulo 9
1179palavras
2023-02-12 00:01
Quando entrou, Bianca pode perceber que ele estava transtornado e tinha chorado. Ela atendeu um cliente em nome do pai a uns seis meses, logo que começou o último semestre. Ela estava atendendo clientes, pegando casos cada vez mais importantes. Mas como não era formada e não tinha OAB, ela montava o caso e um dos associados do pai só representava. O pai a ensinou a ler os clientes e só aceitar causas que pudesse ganhar. Assim ela aprendeu a estudar casos até a exaustão e só aceitar se conseguisse encontrar todas as brechas possíveis a favor do cliente pra ganhar a causa. Não importava se o cliente era inocente ou não. O pai a ensinou também a colocar os seus limites. E esse cliente era um deles. Estupro de vulnerável. Quando Bianca o leu, teve certeza de que era culpado. Sabia que conseguiria defende-lo, mas o seu limite do que é aceitável não lhe permitia, então recusou.
Seu pai o leu, conversou com ela pra fazer uma segunda avaliação, ela trabalhou duro e convenceu a si e a todos de que ele era inocente.
Era o mesmo padrão desse cliente que ela via em Gustavo agora. Culpado! Mas se lembrou que o pai gostava muito dele, então abriu mais a porta dando a ele espaço para entrar. Ia dar chance de ele convence-la de que seu pai o leu corretamente.

- Bia...
- Bianca Duprat. Comece a se explicar. E fale a verdade. Sou uma advogada de respeito, capaz de ler um culpado. Trabalho com fatos, então me convença de não mover uma ação por danos morais contra você e não defender sua mulher por traição que gerou danos morais nela e em sua filha.
- Bianca, eu posso explicar tudo.
- Estou contando com isso, pare de enrolar. - Bianca parou quando viu uma lágrima rolando no rosto dele. Estava fazendo a profissional forte e imparcial, mas por dentro estava explodindo de vontade de o abraçar e dizer foda-se. - Não estou no meu escritório, não tenho lencinhos pra você fazer seu teatro. Aliás, também não tenho tempo. Comece logo.
- Vou começar então como a conheci e porque me deixei levar. Eu menti pra você desde o começo. Não fui roubado da minha mãe, fui doado. Minha mãe adotiva, Célia sempre me contou isso. Meu pai seria promovido, mas teria que se mudar pra Minas pra assumir, então ela não poderia mais cuidar de mim. Minha mãe mandou ela me levar junto, e meu pai só aceitou se me adotasse.
Minha mãe Célia era só amor, mas meu pai era difícil. Sei que os registros são de que ele era um homem rígido pela formação militar, mas eu senti na pele que era ruim mesmo e um agressor. Ele me batia, me torturava e quando minha mãe perguntava, ele dizia que queria uma menina, não um menino. Então ele a convenceu de que se tivesse a filha dele, pararia de me maltratar e ela aceitou adotar uma menina. Nós dois tínhamos quase a mesma idade quando Naomi veio morar com a gente. E meu pai então ficou pior. Enganou minha mãe, não parou de me maltratar e tinha mais uma pra agredir.

Menos de dois anos depois que Naomi chegou, minha mãe ficou grávida de Pedro. Meu pai ficou tão feliz que se transformou. Parou de nos agredir e nos maltratar, era sempre sorrisos e foi a gravidez mais alegre que eu já vi. Mas quando ela teve o resguardo, meu pai começou a abusar de mim. Eu não contei nada a ela. Não queria que ela sofresse nesse período. E ele foi abusando de mim com ela achando que estava tudo bem. Foram mais de um ano até que ele tentou abusar da Naomi e eu não deixei. E foi a primeira vez que ele me agrediu com chicotes. - Gustavo foi falando e tirando a camisa. Bianca horrorizada, chorava sem ter reação. Quando ele tirou a camisa social que vestia e a regata que usava por baixo, virou de costas pra ela e a deixou ver as cicatrizes de chicotadas que cortaram sua carne num passado distante.
Chorando, Bianca se aproximou e encostou nas cicatrizes. Eram muitas, cruzando suas costas, algumas mostrando que o cortes foram mais largos, outros mais profundos. Gustavo se afastou dela e colocou apenas a regata, e continuou
- Quando minha mãe percebeu que ele voltou a me agredir, achou que era hora de dar outro filho pra ele, mesmo com o médico a proibindo porque ela era anêmica e ele achou que ela não resistiria. Minha mãe achava que era o único jeito de frear meu pai e me defender, então ficou grávida novamente. Com os filhos de sangue ele era muito bom. Minha mãe quase não aguentou o segundo parto e foram muitos dias pra se recuperar. A Tamiris era a queridinha. E eu não consegui evitar ele estuprar a Naomi. Minha mãe ainda em recuperação viu, e isso sim foi demais pra ela. Entrou numa depressão profunda e desenvolveu câncer, quando eu estava prestes a completar 16 anos, ela partiu. Mas em seu leito de morte me mandou fugir e tentar achar minha mãe biológica. Contou que a história que ela inventou pro meu pai e meus irmãos é de que a Célia tinha fugido comigo e ela nunca desmentiu porque sabia o desespero da minha mãe na época em dar um filho. E me pediu que quando a achasse, voltasse pra proteger a Naomi.
Então depois que ela partiu, eu fugi. Mas sou filho de militar e não deu dois dias os amigos do meu pai me encontraram. Tomei uma surra e passei a ter muito mais tarefas em casa. Como o mais velho, cuidar dos outros porque não tínhamos mãe.

Fugia sempre que podia e na penúltima vez meu pai me acorrentou num quarto, fiquei muitos dias sem comer sendo torturado, agredido e abusado. Quando me libertou, comecei a treinar box. Em pouco tempo era um pugilista excelente. Quando no meu aniversário de 17 anos ele entrou em meu quarto pra me abusar, bati nele e fugi. Quando o amigo dele me encontrou, não me levou direto pra casa. Queria entender porque eu fugia tanto e eu contei tudo pra ele.
A partir daí eu conheci a bondade das pessoas e o lado bom da vida. Não fácil, mas menos difícil. Ele convenceu meu pai a não dar queixa de mim pela agressão e me deixar ficar na casa dele porque eu ia trabalhar numa das "casas" dele. Eu assumi uma das boates, comecei como barman e pouco tempo eu já tomava conta de tudo. Como era uma boate, eu precisava de uma moça pra faxina noturna, limpar os quartos usados, essas coisas e ele me disse que já tinha desistido dessa função. Toda moça que ele contratava, acabava no salão e ele estava cansado de corromper moças de família.
- Sinto muito pela sua infância difícil, mas não explicou nada do nosso problema...
- Vou te contar, Bianca. Tenho certeza que você vai entender.