Fui mãe muito cedo. Fiquei viúva também. Lembro da minha felicidade quando descobri que estava grávida. Eu e o pai do Allan, estávamos casados há um ano, quer dizer, a gente não sabia que o Allan seria o Allan, mas a minha gestação foi algo muito festejado e esperado pelo pai dele. Fizemos planos juntos, compramos uma casa em Fernando de Noronha – pelo fato dele ser um importante empresário foi fácil conseguir esse feito - Fernando de Noronha era um lugar muito disputado, existiam filas que se perduraram por anos, para se conseguir uma vaga para morar ali. Parecia um sonho. Eu estava feliz e realizada. Mas foi aí que um acidente transformou meu sonho em um pesadelo.
Eu tinha quatro meses quando recebi um telefonema de Recife. Um acidente aconteceu e meu marido estava entre as vítimas fatais. Eu lembro da dor que eu sentia, do vazio e do desespero ao saber que a partir daquele momento eu precisaria seguir sozinha. Foi a época mais difícil de toda a minha vida, sem parentes, nem amigos, apenas um aglomerado de pessoas estranhas, em uma ilha que eu mal conhecia. Sorte a minha que meu falecido marido havia deixado uma gorda fortuna.
Nos primeiros dias eu quis desistir da minha própria vida. Nas semanas seguintes eu perdi a vontade de fazer qualquer coisa, nem cozinhar, que era o que eu mais amava fazer, me animava. Mas foi aí que minha barriga começou a crescer, então veio os primeiros chutes, os batimentos cardíacos, a revelação do sexo, e minha vida voltou a ter um sentido a mais. Foi o Allan que não me deixou desistir, antes mesmo de nascer, ele me salvou de um abismo.
Quando conheci o Natalino, confesso, não passou pela minha cabeça em momento algum que em pouco tempo eu estaria casada novamente. Eu não queria me envolver assim tão rapidamente, mas ele cuidou de mim desde os primeiros instantes, que em poucas semanas eu já tinha mudado de ideia. Nos últimos meses de gestação, Natalino estava lá, admirando aquele bebê como se fosse filho do seu sangue. Ele amou o Allan desde o primeiro momento em que colocou os olhos sobre ele, e isso me fez amar ele pelo resto da minha vida.
Deus quando fecha uma porta, sempre deixa uma janela aberta por aí. Para qualquer situação difícil, sempre vai existir uma saída. Natalino foi a janela aberta no meio do meu pesadelo, e me casar com ele foi a decisão mais acertada de toda a vida. Era um homem que amava o trabalho, provedor da casa, que não pensaria duas vezes em se sacrificar por mim e pelo nosso filho, e o mais importante, aceitou o Allan mesmo não sendo o seu filho e cuidou dele igual qualquer outro pai.
Nossa vida no arquipélago sempre foi tranquila. O Allan nunca foi um menino que me desse muito trabalho. A única época tortuosa para mim foi quando tive que ir embora de Fernando de Noronha. Foi difícil abandonar a minha casa e tudo que havia dentro dela para me aventurar em uma cidade grande como São Paulo, onde eu não conhecia ninguém. Confesso que nunca me adaptei a toda aquela agitação. Era gente aglomerada demais no mesmo lugar. Eu senti saudades da paz de Noronha por todos os anos em que morei em São Paulo.
Conforme o Allan foi crescendo, meu coração se acochava cada vez mais. Ele já não era mais um menino, falava até em namorar. Avalie só a confusão que ele arrumou quando disse ao Natalino que estava de Chamego com a filha do patrão. Tinha noites em que Natalino nem dormia direito preocupado em perder o emprego. Era uma zorra dentro de casa todas as vezes que esse assunto era falado, mas ele foi se acalmando quando entendeu que não havia problemas nenhum com aquele relacionamento. Seu Agenor aceitara e até se agradara em ver Roberta de chamego com Allan.
Eu como mãe, não podia palpitar, Allan já era um homem crescido, consciente de suas escolhas, mas eu sabia que entre aqueles dois não havia amor. Minha intuição dizia não ser uma escolha correta. Abdicar de um amor que ele sentia por Charlote a qual se arrastava por tantos anos, não era sábio. Mesmo que Roberta fosse uma boa menina, estudiosa e respeitosa, não era ela que o Allan amava e eu me perguntava, como ele conseguiria ser feliz assim?
Alguém consegue ser feliz sem amor?
Eu não sabia a resposta, porque não conheci até hoje ninguém que viveu sem amar. Mas eu sabia que o amor transformava a vida das pessoas, e eu pude ver isso no Allan quando voltamos para Fernando de Noronha.
Já havia uma semana de Jacob havia morrido e eu sabia que a partida do Allan de volta a São Paulo se aproximava cada vez mais. Estávamos hospedados na casa da Lúcia, esperando nossa casa ser desocupada, quando ela veio falar comigo:
— Oxente, Francisca – ela se sentou ao meu lado no sofá – até parece que quem perdeu um filho foi você. Nem sei qual de nós duas está mais abatida, visse.
— A pois – disse, com o coração acochado – me sinto exatamente assim, como se fosse perder o Allan a qualquer momento.
— Não fale assim, mulher – me recriminou – O Allan é um rapaz que tem juízo. Não tem por que se preocupar com essas coisas.
— Não o suficiente para desistir de voltar para São Paulo.
Lúcia caiu em si, entendo do que de fato eu estava falando.
— Acha que Charlote é capaz de impedir que ele vá embora de novo?
Perguntei, e ela abriu um sorriso escancarado.
— Já ficou claro para nós duas, que eles dois se amam – ela gostava da ideia de o Allan ser seu genro – e quer saber, minha amiga? Eu acredito sim. Esse amor que eles sentem um pelo outro é capaz de tudo.
— Não sei – lá no fundo eu queria acreditar nas palavras dela – O Allan, deixou uma moça chamada Roberta esperando por ele lá em São Paulo.
— Diacho – ela estava surpresa – Charlote nunca me falou sobre isso.
— A pois – abaixei o tom de voz – talvez por sentir que deve alguma coisa a ela, o Allan se sinta na obrigação de voltar.
— Oxente! – Lúcia também sussurrava – existe algo sério entre eles?
— Um rolo qualquer – respondi – como é que os jovens dizem hoje em dia? – parei e tentei lembrar as palavras que fugiam da minha memória - Estão ficando – conclui, achando a modernidade de hoje um absurdo.
Então ela abaixou o olhar cruzando os braços sobre o peito e ficou pensando bastante sobre aquilo.
— Engraçado, – voltou a falar – eu nunca vi Charlote de chamego com ninguém por Fernando de Noronha. Está sempre enfurnada naquela ONG. Viveu como se esperasse o dia que o Allan iria voltar.
— A pois – fiquei borocoxô com a revelação – é uma pena que o Allan tenha se deslumbrado tanto pela cidade grande e esquecido todo esse amor que sente por Charlote.
— Até os deslumbramentos tem seu fim – ficou agitada novamente – mas o amor que ele sente pela minha filha, nem o tempo conseguiu destruir. Ele não a esqueceu Francisca, é impossível.
— O que se pode fazer então? – perguntei com o coração na mão.
— Minha mãe sempre dizia, – ela se levantou, passando a mão suada sobre o avental preto que vestia – o que é seu sempre dá um jeito de te encontrar ou voltar para você.
Também me levantei, mas avexada do que estava.
— Se é dá vontade no nosso Senhor Jesus Cristo que nossos filhos fiquem juntos, – apanhou minhas duas mãos, segurando com bastante firmeza – eles ficarão juntos. Então não avexe seu coração antes da hora, Francisca. Charlote dará um jeito do Allan ficar.
Então ela me abraçou. Um abraço bem acochado como se quisesse transferir toda a paz que sentia, diretamente para mim. Quando me soltou tinha um sorriso no rosto.
— Vou passar um café quentinho para gente, visse.
Virou as costas e saiu.