Capítulo 64
1319palavras
2023-01-18 21:57
— Você vai mesmo fazer aquilo que disse – estava ofegante. Aquele sofá parecia pesar uma tonelada – sabe, me arrumar um emprego?
— Claro que sim – confirmei – hoje mesmo farei isso.
Outro sorriso e Bentinho estava radiante.

— Acho melhor se levantar, antes que o painho saia de lá de dentro soltando fumaça pelas narinas.
Ele deu um pulo do sofá e começou a caminhar para fora, precisávamos carregar o restante das coisas. Chamei ele antes de ir:
— Bentinho – ele se virou, parando para me escutar – só me promete que, caso eu não volte para São Paulo, você vai cuidar da Roberta para mim.
Ele olhou azuretado, porque não conhecia a Roberta.
— Eu prometo.
E se foi. Eu fui logo atrás e enquanto carregava toda a mudança para dentro pensava na decisão que eu teria que tomar. Se eu voltasse para São Paulo, mesmo com a decisão de ir lá apenas para me despedir, sabia que não voltaria mais a Noronha. No fundo eu era um cabra frouxo para despedidas. Meu coração se acochava quando eu me imaginava dando adeus a Charlote mais uma vez. Por outro lado, me sentia desprezível em ficar sem dizer adeus a Roberta. Era a decisão mais difícil que eu tomaria na minha vida. De um lado a mulher que eu amava, do outro seu Agenor e toda a gratidão por tudo o que ele havia feito por mim.

De repente a casa ainda vazia foi tomada por aquelas vozes e eu soltei um riso diante da nostalgia. Eu conhecia aqueles passos, aqueles risos, era Mateus e Fábio, entrando sem pedir licença como faziam na nossa infância:
— Está pensando na morte da bezerra, Allan – Mateus foi logo falando.
— Avalie só – Fábio concluiu – ele está pensando na Charlote e nos lábios carnudos dela.
Pela primeira vez eu não fiquei zangado com eles por dizer aquelas coisas, pelo contrário eu estava feliz por ainda tê-los comigo.

— Oxente! – interrompi o riso dos dois – como você adivinhou, seu cabra safado?
Nos abraçamos. Eu senti saudades daquilo. Eles já eram homens feitos, tinham suas famílias formadas, mas a essência ainda era a mesma.
— Já decidiu o que vai fazer da sua vida? – Mateus perguntou – e nem a Charlote vai te impedir de partir dessa vez?
— Vou embora, amanhã – de repente o ambiente ficou pesado. Os sorrisos se transformaram em olhares tristes e perdidos – amanhã de manhã pego o voo de volta a São Paulo.
— Tem certeza que é isso que você quer? – perguntou Fábio.
— Que diacho, Fabinho – respondi – não torne as coisas mais difíceis.
— A pois – continuou Fabinho – já que você está decidido, precisamos fazer uma festa de despedida dessa vez.
— Combinado então – sorri – mas precisa ser aquelas festas arretadas de boa, igual na época de quando éramos crianças.
Então olhei para o Mateus que parecia mais triste do que deveria.
— Está tudo bem, Mateus? – perguntei, mas ele não olhou para mim – eu voltarei um dia. Você não vai se livrar assim de mim tão fácil.
— Eu sei que não.
Mas ele continuou de cabeça baixa, olhando para os pés, sujos de poeira.
— Que diacho, Allan – saiu rápido e alto suas palavras – eu preciso te contar uma coisa.
— Oxente homem – fique avexado – então diga.
— Fernandinho deve ter te contado toda a verdade – começou a falar e eu acenei com a cabeça, afirmando – contou que ele foi o responsável por você ir para São Paulo, por que queria que o caminho ficasse livre para ele conquistar a Charlote, certo?
— Como você sabe disso?
Fiquei azuretado com a informação.
— Porque a ideia foi minha – olhou bem nos meus olhos e eu vi o quanto ele se arrependia daquilo – ele me confessou que estava apaixonado pela Charlote e queria um jeito de manter você longe dela.
Parou, respirou fundo, antes de continuar. Agora ele chorava.
— Aquele panfleto que chegou na sua casa não veio de São Paulo – respirou mais um vez – eu o dei a Fernadinho para que entregasse para você. A ideia de tudo, foi minha.
Eu olhei para ele e me questionei imediatamente, se alguma vez na vida, eu tivesse amigos de verdade. Todo mundo naquela ilha parecia querer meu mal, me ver longe, pelas costas.
— Eu achei que você era meu amigo. – falei, enfim. Estava confuso.
— Eu sou – se justificou – eu só percebi o erro que eu tinha cometido depois que você foi embora.
Me calei, porque não sabia o que dizer. Precisava reorganizar meus pensamentos para tentar entender suas justificativas.
— Eu me arrependo amargamente de ter ajudado o Fernandinho nessa ideia maluca – enxugou as lágrimas – me desculpa, Allan. Na época eu pensei que seria bom para você.
— Foi bom – voltei a falar, olhando para ele – não vou mentir e dizer que o que vivi em São Paulo foi ruim. Pelo contrário.
— Mas eu te separei da Charlote – pronunciou com peso – e fiquei sem meu amigo por todos esses anos.
— Está tudo bem, Mateus – fui sincero, porque eu entendia que não importava a quem eu culpasse, já estava feito – está perdoado. Sem mágoas ou ressentimentos.
— Não quero que você vá embora de novo – pediu.
— Sobre isso não há muito o que fazer.
Então olhei para o Fábio, que parecia espantado com aquela confissão. Lançou o olhar até mim e ficou agitado.
— Oxente! – disse ele – não olhe para mim, assim, Allan. Eu não tenho nada a ver com tudo isso.
— Tem certeza – o encarei – nenhum segredinho sequer?
— Claro que não – levantou as mãos como defesa, depois passou uma das mãos sobre o queixo, pensando – quer dizer, teve um dia que eu comi escondido o lanche que sua mãe fez para você. Mas juro, foi só uma vez.
— Avalie só, os amigos da onça que eu tenho.
Eles riram e de repente as vozes se misturavam em uma discussão sem fim, relembrando coisas que fazíamos escondidos na infância.
— Uma pena o Fernandinho ter seguido esse rumo – falou Mateus – imaginar que eu o ajudei a se afundar.
— Deixa de leseira, Mateus – eu o recriminei, não era ora de meia culpas ou lamentações – não quero ninguém aqui se culpando pelos erros daquele treloso do Fernandinho, entendeu?
— Mas ele foi preso mesmo? – Fabinho perguntou – até agora eu não consigo acreditar nisso.
— Foi sim – respondi, e minha voz saiu baixa – eu ajudei a prendê-lo. E não há ninguém culpado além dele.
— A pois – Mateus sorriu e eu sabia o que aquele gesto significava: lá vinha bomba – você vai mesmo deixar para trás aquele pitelzinho da Charlote solta por aí.
— Não fale assim, dela Mateus – elas não mudam mesmo – espero que algum dia vocês tenham a chance de conhecer a mulher maravilhosa que ela é.
Mas aí o painho apareceu de novo e ficou na bronca comigo mais uma vez. Matheus e Fábio deram um jeito de amarrar o jegue e ir embora, para não ter que trabalhar com a gente na mudança. Antes deles partirem, eu abracei Mateus, como uma resposta de que estava tudo bem entre a gente. Eu jamais sentiria raiva dele por isso. Sei que o fez com a melhor das intenções e essa decisão havia mudado a minha vida para melhor. Eu era um homem formado, com uma vasta experiência e um bom emprego. Mas no fundo, eu era também um homem incompleto. Eu não tinha Charlote comigo e só ela era capaz de me fazer largar mundo para ficar aqui.