Allan se foi, deixando um buraco gigante na minha vida. Meu relacionamento com Elis piorava cada vez mais, conforme eu ia ficando mais velha. Parecia uma disputa para ele. A sensação que eu tinha era que minha própria mãe me invejava. Era uma mulher rancorosa e diabólica.
Eu não aguentava mais viver naquela casa. Dividir o mesmo teto com mainha foi uma das coisas mais difíceis de toda a minha vida. A gente brigava diariamente, não havia paz, não era possível haver, não quando eles moravam no mesmo teto que eu.
Lembro que nessa época Bernardo e eu ficamos mais próximos. Com a partida de Allan, eu convenci a mim mesma que eu precisava esquecê-lo imediatamente. Bernardo era apaixonado por mim, e por mais que eu o maltratasse, não podia negar, ele era um fiel escudeiro e poderia me salvar do caos que era minha vida com Elis. Não havia sentimentalismo em relação ao Bernardo. Eu era totalmente indiferente aos sentimentos dele, mas aprendi a mentir, a dizer a ele que sentia o mesmo, ainda que sentisse repulsa todas as vezes que ele me beijava. Estava aí outro ponto que eu me parecia com mainha. Ela também havia casado com o meu pai sem amá-lo, somente por puro interesse. Eu agia igual, me relacionava com Bernardo para que em um futuro breve, ele me arrancasse dali.
Mas não houve muito tempo. Quando tínhamos quatorze anos, em um erro fatal eu engravidei do Bernardo. Lembro do meu desespero. Não era assim que eu havia planejado as coisas, mas aconteceu e o pior ainda estava por vir.
—Vocês vão se casar – painho dizia isso com a maior naturalidade do mundo, como se estivéssemos em 1980, quando ele se casou com Elis.
—Fudeu a tabaca de chola – eu falei, desesperada – eu não quero me casar, painho. Nem terminei os estudos ainda.
— Que pensasse nisso antes de ficar com sem-vergonhice por aí – bateu o pé – já está decidido. Precisam aprender a arcar com as consequências dos seus atos.
Bernardo pareceu não se importar muito com aquilo. Estava feliz, casaria com a mulher que ele amava, sem imaginar que eu tornaria a vida dele um verdadeiro inferno.
4
O nascimento de Morgana
Lembro da tristeza que se apossou do meu coração naquele dia que aconteceu o nosso casamento. Como alguém podia concordar com a união de dois adolescentes que não entendiam nada da vida, que começavam a viver agora? Os pais do Bernardo não se opuseram aquela decisão. Parece que todo mundo se conformava com aquilo, menos eu.
Nos primeiros meses de casados, antes de Morgana nascer, nossa união foi tranquila. Bernardo me tratava como uma rainha, fazia todas as minhas vontades. A gente tinha ido morar no fundo do quintal da casa dos pais deles. Recebemos toda a ajuda necessária para que assim, continuasse estudando sem precisar trabalhar naquele momento.
Eu lembro da felicidade do Bernardo quando pousou os olhos pela primeira vez em Morgana. Foi amor à primeira vista, mas estranhamente eu não conseguia sentir absolutamente nada por aquela criança. Conforme os meses foram passando minha repulsa só aumentava por ela. Eu sentia-me esvaziando aos poucos, minha vida estava passando, enquanto eu perdia tempo trocando fraldas, cuidando da casa, passando noites em claro. Até dos estudos eu acabei desistindo. Me arrependi amargamente daquela maldita noite em que havia me deitado com Bernardo. Queria que o tempo voltasse. Queria que tivesse sido diferente. Eu estava literalmente no meu limite.
Painho havia arrumado um emprego de jovem aprendiz para Bernardo. Ele trabalhava no aeroporto de Noronha, despachando malas, ou coisas assim. Lembro daquele dia como se fosse hoje, da dor que senti quando recebi a pior notícia de toda a minha vida. Bernardo havia chegado calado, com os olhos vermelhos, uma tristeza no tom de voz. Não que eu me importasse com ele, mas fiquei avexada com a expressão que havia no rosto dele.
— Houve um acidente de avião – ele começou a falar – um avião que saiu daqui de Noronha em direção aos Estados Unidos.
Meu coração gelou porque eu me lembrei imediatamente que painho viajou naquela manhã, justamente para os Estados Unidos. Painho não costumava viajar muito e viagens internacionais eram coisas bem raras para ele. Mas ele estava de férias e merecia aquele descanso, havia poupado durante anos, mesmo que Elis gastasse muito, ele conseguiu guardar um dinheiro para viver aquele momento.
— Não há sobreviventes – ele continuou.
— Deve ser outro avião – concluir – quantos aviões saem daqui de Noronha para os Estados Unidos.
— Aquele havia sido o único.
Que diacho! Eu desabei, o mundo desabou. Painho estava morto, não houve nenhum sobrevivente daquele trágico acidente de avião. Era como se o mundo tivesse ficado completamente cinza. Eu estava perdendo a única pessoa que me amou de verdade. A única, que mesmo lhe faltando tempo, tentou cuidar de mim. Eu sentia que a qualquer momento entraria em colapso por causa de todas as tragédias que vinham acontecendo em minha vida. Era demais para minha cabeça. Casada aos quinze anos, com um bebe para cuidar, com um marido que eu detestava e sem meu pai. Eu me questionava o que mais poderia piorar na minha vida e depois me arrependi desse questionamento. Eu não tinha ideia que poderia sim, ficar muito pior.
No enterro, do que restou do corpo de painho, Elis chorava. Seu rosto molhado pelas lágrimas demonstrava uma mulher realmente abalada com aquele momento. Eu me lamentei por ela não estar dentro daquele avião também. Pelo menos com a morte dela eu teria paz, mas a vida não era justa comigo e eu sabia bem que aquelas lágrimas eram de puro egoísmo. Com a morte de Painho a vida boa de Elis havia acabado. Por isso ela se desesperava diante daquele caixão. Semanas depois da morte dele, ela entrou na justiça exigindo a pensão em cem por cento. Até nisso ela queria me roubar. Dizia ela que eu ainda era de menor e por ser minha mãe, ela mesmo cuidaria do meu dinheiro. Eu não entendia nada de processos de justiça, mas lhe foi negado o pedido. Elis passou a viver com uma mixaria e depois daquele dia ela nunca mais foi a mesma. Painho, enfim, descansaria em paz, longe de Elis. Pelo menos esse fato me deixou aliviada.
As coisas em casa não andavam nada bem. Eu me sentia esgotada. Tinha dias que queria fugir daquela realidade, para bem longe onde eu pudesse descansar. Era um mártir para eu cuidar de Morgana, viver ao lado de Bernardo, viver aquela infeliz vida. Lembro que ele chegou do trabalho todo amoroso para cima de mim, e eu estressada comecei uma briga:
— Que diacho! - me afastei dele arretada – saí para lá com essa inhaca. Estás todo peguento e queres vir me agarrar.
— Oxente, Emília – o brilho nos olhos dele desapareceu. Bernardo parecia realmente decepcionado – só queria lhe fazer um carinho e dizer o quanto você é especial para mim.
— Avalie só – eu cai na gaitada – não quero os seus carinho, visse.
Eu estava com a moléstia. Já havia guardado aquela insatisfação dentro de mim por tempo demais. Estava a ponto de explodir. Bernardo se calou por alguns segundos, olhou pra mim tristonho, decepcionado. Mas eu não me importei, juro que não houve nenhum remorso sobre o que eu fiz.
— Se está insatisfeita, – voltou a falar – por que se juntou comigo?
— Por quê? – eu continuava debochando de toda a situação – você lembra que fui obrigada? Por mim, eu nem estaria aqui, agora.
— Oxê! – houve espanto, como se ele não soubesse de nada daquilo – tu nunca me amou de verdade? É isso mesmo que estás a dizer?
— É isso mesmo – cruzei os braços sobre o corpo, corajosamente continuei – pelo menos burro já percebi que você não é.
— O que está querendo dizer com isso?
— Que estou cansada – não foi exatamente isso que eu queria dizer – cansada de ter que cuidar dessa catarrenta que chamo de filha, cansada dessa casa, cansada de você. Você não percebe a desgraceira que se tornou as nossas vidas, Bernardo? Como você pode ser feliz sendo pai aos quinze anos?
— Você só pode está louca – ele sabia que eu tinha razão e reconhecia o meu desespero – amanhã mesmo vou arranjar alguém para te ajudar a cuidar da Morgana, assim você pode descansar. Está bom para você?
Ele disse amorosamente essas palavras, Bernardo tentava ignorar minha fúria e se importava com minha dor. Mas eu não me importei.
—Não tem nada bom – explodir, e meu grito foi como um estrondo. Até a coitada da Morgana acordou com a minha histeria – Eu quero que esse pesadelo acabe. Quero ir embora daqui, porque eu não aguento mais você nem essa menina em minha vida.
Cada vez que eu abria minha boca, deixava Bernardo mais perplexo ainda.
— Você não pode está falando sério – ele caminhou em direção a Morgana, que berrava feito uma louca, catou ela no colo e ficou os dois agitados pela casa – Você não vai se livrar de mim assim tão fácil. Esteja avisada, Emília.
— Vai me obrigar a viver esse inferno.
— Isso daqui não é um inferno – gritou comigo – você que é uma mal-agradecida, visse.
Eu me calei naquele momento, e pensei em uma forma de convencer ele que eu estava certa. Bernardo não conseguia enxergar a realidade, não conseguia perceber que eu não tinha nascido para ser mãe, nem esposa, pelo menos não dele. Então pensei em algo bem arriscado e o fiz sem pensar nas consequências.
— Eu amo o Allan.
Houve um silêncio perturbador entre nós. Morgana voltará a dormir, e eu até podia ouvir a respiração agitada de Bernardo, enquanto seus olhos se arregalaram e se inundavam em lágrimas.
— Eu sempre amei o Allan – continuei – Só fiquei com você na primeira vez para provocar ciúmes nele. Quando me deito com você é com ele que me imagino fazendo amor. Eu nunca te amei e nunca vou te amar. Nunca.
Então ele se apressou em minha direção e o estalo do tapa que eu levei bem no meio do rosto, consigo lembrar até hoje. Ardia feito pimenta e eu não podia acreditar que aquilo estava acontecendo comigo.
Olhei para ele apavorada, enquanto a expressão no seu rosto se transformava em algo feio e sombrio. Ele estava arretado, com ódio mesmo. Seu punho estava fechado e eu sentia que levaria uma coça a qualquer momento.
— Você não passa de uma desavergonhada – as lágrimas desciam pelo seu rosto – uma mentirosa fia duma égua. Como tem coragem de dizer isso a mim?
— Com a mesma coragem que você teve de me bater – eu também chorava e o caos estava instalado bem ali – se quiser realmente ficar comigo, vai ter que conviver com essa realidade, e no dia que o Allan voltar, pode ter certeza que não vou pensar duas vezes e correr para os braços dele.
Eu não media as consequências das minhas palavras. Bernardo ensaiava mais uma vez me bofetear na cara novamente.
—Vai me bater de novo? – a pergunta fez ele parar – pode bater, Bernardo, mas isso não muda o fato de que vivemos uma merda de relacionamento. Se eu estiver infeliz ao seu lado, você também estará ao meu lado. Bem vindo ao inferno!
Eu me calei e sai avexada, de perto dele. Meu corpo inteiro tremia. Era pior do que um pesadelo. Eu reformulei todo um futuro na minha mente, e ele era sombrio e triste. Eu só não imaginei que as agressões de Bernardo não parariam ali.
No dia seguinte, ele fez o que havia dito, contratou alguém para me ajudar a cuidar de Morgana. Por alguns dias, semanas talvez, as coisas pareciam se acalmar. Ele agia como se nós dois nunca tivéssemos tido aquela conversa. Eu que não sou besta nem nada, aproveitei a ajuda e me afastei de Morgana. Eu saí de casa ainda pela manhã, deixando Morgana aos cuidados daquela moça e voltava só a noite. A verdade era cruel, eu não me importava nem um pouco com aquela criança e mais uma vez eu agia igual à minha mãe. Abandonava minha filha por sorte. Não oferecia a ela carinho, atenção, nem a educava. O ciclo se repetia e no final eu saberia qual seria o destino de Morgana. Ela seria fracassada como eu.
Mas os meses foram passando e Bernardo logo descobriu minhas fugidas diárias. O homem ficou feito um pantel, se transformou da água para o vinho, ou, pelo menos, revelou quem realmente era ele. Começou a sair do emprego e ir para o bar. Chegava em casa embriagado, às vezes, até drogado e as agressões se repetiam. No começo eram só tapas, depois socos e pontapés. Tinha dia que era impossível pôr os pés para fora de casa, de tão roxa que eu ficava. Acho que a intenção dele era exatamente essa, me deixar machucada o suficiente para que eu não saísse de casa. Eu aguentei calada por anos. Eu poderia ter fugido desse relacionamento, mas eu não tinha para onde fugir. Bernardo era a única família que havia me sobrado. Elis vendeu nossa casa e sem me dar a minha parte por direito, fugiu para Recife. Se eu saísse dali, morava na rua. A pensão que painho deixara para mim, era uma mixaria. Eu não conseguiria sobreviver sozinha, em Noronha. Não havia ninguém para me salvar do caos que se transformara em minha vida, e eu acabei me conformando com aquilo.
E seguir a vida, aguentado as surras que levava.