Capítulo 43
1713palavras
2023-01-18 21:51
Eu não me lembro o momento exato em que eu decidi encarnar na Charlote. Eu estudava com ela desde a primeira série, e nessa época ela já era bem cheia, entende? Mas com o tempo, ela foi ganhando mais peso, ficando mais redonda, e vivia grudada no Allan o tempo todo e isso me deixou arretada que só, visse. Ela era indiferente pra mim, quase invisível, eu só comecei a reparar em toda aquela banha quando descobrir que ela arreava os pneus para o boy mais lindo de Fernando de Noronha. E isso eu jamais permitiria.
Eu era a garota mais popular da escola e os boys se arrastavam aos meus pés. Com Allan não foi diferente, ele não resistia aos meus encantos, mas como o tempo ele foi perdendo o interesse, seus olhos não brilhavam mais por mim, e Charlote parecia uma pedra no meio de nós dois. Óbvio que minha implicância com ela começou antes das minhas desconfianças, mas meu ódio por Charlote aumentou muito mais depois que eu descobri a verdade.
— Você acha que é possível o Allan chamegar com a Charlote? – perguntei aquilo com o olhar vago, enquanto Paulinha caia na gaitada.

—Tu só pode está ficando louca, Emília – ela respondeu – olha para o Allan, lindo daquele jeito iria se interessar por aquela gorda sem sal?
Ela tinha um pouco de razão, não havia nada de interessante em Charlote. Era calada, não tinha amigos e deixava qualquer um fazer chacota com a cara dela.
— Avalie só – continuei – eles são amigos há muito tempo e vivem grudados para cima e para baixo. O que há de loucura nisso?
—Só o fato de ter você no caminho dela, já anula essa ideia – disse – Esquece isso e foca na conquista.
Eu me calei para pensar sobre aquilo, mas ela continuou.
— Você pode minar a amizade deles dois – a Paulinha às vezes era mais diabólica do que eu – provoque ciúmes nela, passe mais tempo com ele. Tire ela de cena. Quero ver essa amizade aguentar por muito tempo.

E foi o que eu fiz. Eu ainda não era apaixonada por ele, esse amor surgiu só depois, mas ele se tornou minha prioridade. Eu passei a sentir prazer quando via Charlote sofrendo por ele, havia uma sensação de vitória quando eu percebia que eles haviam brigado por minha causa. As bochechas dela encarnavam quando nos pegava aos abraços e beijos no meio da sala. Allan, às vezes ficava com uma expressão de arrependimento no rosto, de tristeza mesmo, por ver Charlote sofrer, mas às vezes ele parecia não se importar, ria das piadas que fazíamos do corpo dela e nunca a defendia das brincadeiras que sempre fazíamos.
Em suma, eu fiquei realmente surpresa em descobrir que eu me parecia muito com Elis, minha mãe, naquele momento. Não foi algo que me deixou feliz, porque naquela altura eu já detestava minha própria mãe, por ela se divertir com o meu sofrimento, mas essa tristeza se exauriu, e eu passei a não me importar em causar o sofrimento alheio. Era uma maneira que eu encontrava de me refugiar da dor, ali eu me sentia segura, poderosa, imbatível. Eu não queria ser parecida com mainha, eu queria ser pior do que ela, talvez assim, algum dia, ela se orgulhasse de mim.
Eu também aprendi a disfarçar bem todo o caos que havia dentro de mim. Eu, aparentemente, era uma garota sorridente, feliz e realizada. Todos conheciam a Elis, sabiam que ela era uma mulher bonita e gananciosa, mas ninguém conhecia ela como minha mãe. Desleixada, empática e que nunca cuidou de mim como deveria. Até nisso eu me parecia com ela, fingia ser alguém que eu não era, aprendi a mascarar minhas misérias e me revestir falsamente, criando um personagem que todo mundo acreditou existir. Os únicos momentos que eu me mostrava de verdade quem eu era, foram nos momentos com Charlote, ali eu retirava minha máscara e colocava para fora toda a minha podridão. Xingá-la de gorda, balofa ou fazê-la sofrer não dizia quem era ela, mas mostrava quem era eu, de verdade.
Eu cheguei no meu limite, quando em uma tarde resolvi brincar com a cara da gorda. Os insultos já não me satisfaziam, eu queria ir além e bolei um plano com os boys mais trelosos do colégio. A aula já havia terminado, a escola já estava completamente vazia. Charlote havia pedido para conversar com o professor e nós a esperamos sair de lá para fazer, talvez, uma das maiores loucuras da minha vida.

Pegamos ela pelo braço e foi de rosca levar a gorda até aquela lixeira. A balofa tinha uma força descomunal para uma menina da idade dela. Mas, com a canseira e o desespero que se apossou de Charlote, conseguimos levantá-la e enfiá-la de ponta cabeça naquela lixeira. Foi engraçado ver ela entalada ali. Rimos e dizíamos mais insultos. Eu fiquei realmente feliz com aquele momento. Eu queria ficar lá para vê-la sofrer, mas fui impedida por um dos garotos que se agitava dizendo que alguém vinha pelo corredor e que precisávamos fugir dali imediatamente.
Nas horas seguintes, já em casa, satisfeita com o meu feito, vi o painho adentrar a porta feito um pantel. Estranhei ele estar ali aquela hora do dia. Mas meu coração gelou quando lembrei o que havíamos feito horas antes. Ele já sabia do que tinha acontecido e estava ali para me dar uma bela bronca.
— Emília, venha cá.
Ele se ajeitou no sofá da sala, enquanto passava a mão sobre o rosto, apreensível. Painho suava feito um bode velho. Caminhei até ele, enquanto formulava milhões de justificativas para explicar o que eu havia feito. Não consegui achar nada a tempo.
— Charlote está te acusando de tê-la agredido na escola essa manhã — A voz dele estava calma – Afirma categoricamente que você e mais outros meninos a enfiaram dentro de uma lixeira. Isso procede?
Eu comecei a rir quando me lembrei da cena de Charlote entalada naquela lixeira.
— Onde você está vendo graça? – o semblante dele mudou. Painho me olhava com reprovação. Agora ele estava arretado que só – A menina foi parar no hospital e teve uma parada cardíaca.
Eu gelei.
— Ela quase morreu – continuou – e pela risada, você participou desse crime.
— Foi só uma brincadeira – sussurrei, mas não havia nenhum ressentimento em mim – não tenho culpa por ela ser gorda feito uma baleia e ficar presa ali.
Painho levantou-se de impulso, com os olhos arregalados. Pareceu nervoso com minha confissão. Eu vi a decepção estampada no rosto dele ao olhar para mim.
— O que diacho está acontecendo com você, Emília?
Perguntou, mas não esperou a resposta.
— Tentar matar alguém não é uma brincadeira – ele gritou e eu me assustei. Painho nunca havia gritado comigo – a mãe dela fala até em te denunciar à polícia.
Eu não conseguia dizer nada. Meu coração socava tão fortemente meu peito que eu comecei a sentir uma dor insuportável naquela região. Eu não queria ser presa, não por aquilo.
— A partir de hoje você está de castigo – ele caminhava de um lado a outro na sala, avexado – vai vir da escola direto para casa e não vai sair mais para lugar algum.
— Tanto faz – disse, enfim – desde quando eu nasci a minha vida já é um castigo.
— Avalie só! – colocou a mão na cintura – não seja ingrata, Emília. Eu te dou tudo o que precisa.
— Tem certeza painho – agora eu chorava – porque a sua vida é trabalhar para bancar os luxos da Elis e acabou esquecendo que também tem uma filha. Eu não preciso do seu dinheiro e nem de nada que ele possa me comprar. Quer cortar também a minha mesada? Fique a vontade, porque o que eu sempre precisei do senhor, amor, atenção e carinho, eu nunca vou ter.
Eu corri para o meu quarto e a porta batendo foi tudo o que painho conseguiu ter de mim pelo resto do dia. Ele ainda foi lá, bater na porta aos berros, pedindo para que eu abrisse porque ainda tínhamos muito o que falar, mas eu fingi que não ouvia. Continuei com o rosto enfiado no travesseiro chorando. Ele só parou de bater quando Elis chegou e a confusão só aumentou lá em casa. Ela gritava de um lado, ele berrava do outro e meu nome pairava no meio. Pareciam duas pessoas loucas, decidindo o que era melhor para mim, mas nenhum dos dois entravam em um consenso. Elis fazia pouco caso e o painho gesticulava que o que eu havia feito era muito grave. Eu ainda escutei ele dizer que a culpa de tudo aquilo era dela. Que Elis havia me maltratado tanto, que eu estava descontando todo esse ódio que ela mesma despejava em mim, em outras pessoas. Nisso eu tive que concordar com ele. Eu havia me tornado uma versão pior do que minha própria mãe. E as coisas só pioraram.
Nos dias que se passaram, eu fui proibida de chegar perto da balofa. Eu não podia conversar com ela ou qualquer coisa parecida. Mas eu odiava a Charlote, por ela ter tirado Allan de mim, por ela ser quem era, por está tornando minha vida bem pior do que já era. Falando em Allan, o boyzinho mais lindo de Noronha havia partido para, talvez, nunca mais voltar. Me deixou com um buraco enorme no peito, eu chorava constantemente com saudades dele. Era inadmissível que a vida me roubasse tudo, até mesmo o meu grande amor. As coisas na minha cabeça só pioraram quando chegou aos meus ouvidos os fuxico de que antes do Allan partir ele havia se declarado a Charlote. Aquilo quase me enlouqueceu. A gorda havia me vencido, me mostrando que a beleza nem sempre valia de algo.
Mas Charlote me pagaria, por lágrimas derramadas, por toda essa angústia entalada no meio peito. Mesmo que Allan nunca mais voltasse, ela sofreria as consequências. Eu já havia escolhido meu bode expiatório para despejar minha raiva pela vida. Quem melhor do que o pudim de baleia?
Eu jurei a mim mesma que eu faria isso.