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Quinze anos depois…
Charlote Lauren
Era o primeiro dia de aula do ano letivo na escola arquipélago e enquanto eu esperava Fernandinho e Betânia chegarem em frente a escola, uma onda de lembranças me invadiu de imediato. Inevitavelmente eu recordava dos momentos felizes e até mesmo daqueles não tão bons assim, a qual vivi ali dentro. A ONG já funcionava há mais de quinze anos, e estávamos ali para continuar um trabalho contra o bullying que se arrastava desde o ano passado.
O sino soou no mesmo tempo em que Fernandinho e Betânia chegavam, entre risos. Na primeira vez em que percebi que aqueles dois começavam a se entender, achei estranho. Eu jurava que Betânia jamais perdoaria o Fernandinho pelas coisas que ele havia feito no passado. Mas ela perdoou e os dois se tornaram bons amigos. Fernandinho demonstrou-se prestativo e disposto a ajudar a ONG e as pessoas que constantemente nos procuravam pedindo ajuda. Éramos um grupo cheio de amor para oferecer. Que lutávamos contra o preconceito, a discriminação, principalmente contra aquelas “brincadeiras” tão devastadoras que existiam dentro das escolas. Fizemos diversos trabalhos em Recife, porque Fernando de Noronha era um lugar bem pequeno e foram poucas as vezes em que apareceram casos graves em que tivemos que intervir. Ajudar as pessoas era a minha vida. Confortá-las e mostrá-las que independente do que o mundo dizia, sempre existiria alguém que as valorizam. Esse alguém seria eu.
— Porque você é sempre a primeira a chegar?
Perguntou Betânia a mim, enquanto bocejava de propósito mesmo.
— Não sei – respondi – acho que não sou tão preguiçosa como gostaria.
— Oxente! Está me chamando de preguiçosa ? – Me perguntou e eu rir – e você Fernandinho, por que está se abrindo todo?
— Está com a moléstia, Betânia? – Ele questionou – pare de conversa fiada e me deixe ao menos cumprimentar Charlote.
— E eu estou te segurando, cabra?
Fernandinho se aproximou de mim me abraçando e meu rosto encarnou. Eu ficava sem jeito todas as vezes que ele se aproximava porque eu já vinha percebendo um certo interesse dele comigo. E era algo relacionado além da amizade.
—Vamos logo – disse enquanto me afastava e caminhava em direção a entrada do colégio – Pelo jeito teremos muito o que fazer.
— Não me aperreia, Charlote – disse Betânia me fazendo concordar com Fernandinho. Ela estava arretada que só – Não sei porque tanta pressa para ganhar problemas novos.
De certa forma ela tinha razão, mas não a respondi. Entramos na escola e nos direcionamos para a sala da diretora. Há exatamente dez anos o antigo diretor, pai de Emília, faleceu em um trágico acidente aéreo quando viajava ao exterior. Foi uma tristeza só e eu até cheguei a ficar com pena dela. Não quero nem imaginar a dor de se perder um pai. Falando na Emília, ela casou com Bernardo e tiveram uma filha chamada Morgana. Me perguntei durante muito tempo se Allan soube disso.
— Bom dia, Lauren – era sempre assim que a diretora Carmem me tratava. Dizia ela que achava Lauren um nome muito bonito – Está tudo bem, Betânia?
Betânia olhou para mim, levemente incomodada. Foi inevitável não rir.
— Estou péssima essa manhã – respondeu, com um sorriso forçado nos lábios – mas não se preocupe. É passageiro.
— Desejo melhoras – Carmem nos convidou a sentar, então falou – Como sabem temos novos alunos e novos problemas.
— Lá vamos nós! – Por muito pouco não dou uma chapuletada na orelha de Betânia por aquele comentário.
— Temos uma aluna nova chamada Morgana Silva – falou enquanto me entregava uma pasta – ela tem um currículo bem problemático e foi expulsa do último colégio que estudou.
—Fudeu a tabaca de chola – falou mais uma vez Betânia – essa não é a filha daquele cavalo do cão da Emília?
— Olha o palavreado, Betânia. Que diacho! – Eu a recriminei.
— É ela mesmo – concluiu Fernandinho enquanto lia as informações disponíveis no documento que eu segurava – se ela for igual a Emília, tenho que concordar com a Betânia. Temos um problemão aqui.
— Então vocês conhecem a mãe da menina?
—Infelizmente – falou Betânia.
— Morgana tem um longo histórico de bullying praticado nas escolas em que estudou. É agressiva, violenta…
— Filho de peixe, peixinho é – continuou Betânia.
Eu queria mandá-la calar a boca, mas ela tinha razão.
— Precisamos conversar com a Emília primeiro – eu disse e percebi que Betânia balançava a cabeça negativamente – investigar o histórico familiar. Depois trabalharemos com Morgana.
— Eu sugiro também um psicólogo – disse Carmem.
— Melhor chamar um exorcista – concluiu Betânia mais uma vez.
Fernandinho caiu na gaitada e eu me segurei para não brigar com os dois.
— Não leve em consideração o que a Betânia diz, senhora Carmem – falei – ela mesmo disse que está tendo um péssimo dia. Marque uma reunião com a mãe da menina e resolveremos isso.
— Compreendo perfeitamente – nos levantamos já para partir – confio muito no trabalho e empenho de vocês. Sei que resolverão isso da melhor maneira possível.
Agradeci e saímos. Esperei para afastarmos o mais longe da sala da diretora para só então quebrar o silêncio.
— Que diacho foi aquilo, Betânia? – Questionei ela enquanto parávamos bem no meio do pátio. Ela revirou os olhos – onde foi parar o profissionalismo de vocês dois? Estamos aqui para ajudar e não complicar ainda mais as coisas.
— Oxente! – Resmungou ela enquanto me encarava com aqueles olhos arregalados – Não vou ajudar coisa nenhuma aquela metida a besta da Emília, visse.
— Não é a Emília que vamos ajudar, mas a filha dela.
— O que dá no mesmo – ela contra-ataca meu argumento – está nos metendo num nó cego e sabe disso, Charlote.
— Não há casos perdidos – argumentei mais uma vez – não para mim.
— Que diacho! – Bateu o pé – eu não acredito que você queira solucionar as confusões da Emília depois de tudo o que ela fez a você. Porque sabemos, que isso é um problema que ela causou.
— Você está certa Betânia e não tiro sua razão – se meteu Fernandinho – Mas temos que deixar as diferenças de lado e ajudar sem olhar a quem.
— É muito lindo essa sua filosofia – respondeu – mas ela não tem efeito em mim. Querem se meter nessa bronca, se metam sozinhos.
— Taburete de zona mais arretada – Fernandinho a provocou e acertou sua fúria em cheio – vai nos abandonar é?
— Eu estou com vocês para quase tudo – eu percebi que ela se segurou para não dar a resposta que Fernandinho merecia – mas nessa zona que envolve a Emília eu não me meto. Todo castigo é pouco para ela, visse.
E saiu caminhando apressada em direção ao portão. Olhei para Fernandinho sem saber o que fazer.
— A Betânia está virada num mói de coentro – concluiu ele – mas ela vai mudar de ideia. É só esperar ela se acalmar e conversarmos.
— Certo! – Murmurei desanimada – Enquanto isso tenha uma conversa franca com o seu amigo Bernardo e investigue como ele tem educado a cria dele.
Balançou a cabeça em silêncio concordando e então partimos.
E cada um tomou seu rumo. Caminhei preocupada pelas ruas do arquipélago porque não sabia se seria capaz de resolver esse problema, quando ele envolvia a pessoa mais repugnante que eu já conheci na minha vida. Ter que lhe dar com Emília novamente me deixava nervosa. Olhar em seus olhos e relembrar do passado, de todas as coisas que me disse e que fez a mim, me fazia querer bater nela. Era a raiva que me fazia pensar assim, mas eu não teria tanta ousadia, não por ela não merecer, mas por eu não ser tão baixa assim. Não no tamanho, claro, mas no caráter. Eu não precisava ser igual a ela para lhe dar uma boa lição