Capítulo 9
2152palavras
2023-01-04 22:16
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Apenas Amigos?
O dia começou nublado lá fora e dentro de casa o clima também não era dos melhores. Painho estava numa leve discussão com mainha a respeito da nossa mudança, eu não entendi muito bem o motivo exato daquele aperreio todo entre eles, mas também não fiz questão de me envolver. Levantei da cama ainda pensativo sobre o que eu havia feito com a GG no dia anterior e não conseguia tirar aquela menina da minha cabeça. Sentia uma tremura por dentro de mim, um frio contínuo que parecia me congelar; eu estava doente. Minha garganta doía e o corpo estava mole como um barbante. Ainda restavam algumas horas até que o caminhão da mudança parasse em frente a nossa casinha e eu tinha que falar com Charlote ao menos mais uma vez. Pensei em fugir de casa, me esconder nas grutas por trás do coqueiral da enseada, mas lá seria o primeiro lugar que painho iria me procurar. Não entendi nada do que estava sentindo, mas, de repente, uma vontade louca de viver uma aventura com aquela menina ciumenta, de sorriso redondo e brilho nos olhos que me deixavam tão bem e seguro, me controlava. Era um absurdo. Um descontrole desembestado. Eu precisava de alguns minutos pelo menos, era tudo o que eu queria naquelas horas que faltavam. Mas, o que eu faria? Isso nem o Allan mais esperto do mundo saberia responder a ele próprio.

Desci as escadas, passei pela cozinha de mansinho, com as pontas dos dedos tocando tenuamente o piso vermelho. Os sapatos estavam nas mãos, uma leseira que desde então eu não esqueceria mais. Quando saí pela porta dos fundos, corri numa carreira só. Na disparada eu parava ofegante para calçar os pés que sofriam com os pedriscos da estrada. Não reparei muito bem no céu acinzentado que me cobria naquele dia, mas era um dia belo apesar dos ares de despedida.
Corri tanto que em determinado momento parecia não ter mais direção. Nunca me dera conta de como a casa de Charlote era tão longe da minha. O mesmo caminho que fizemos quase todos os dias durante anos, agora parecia me pregar uma peça das piores possíveis. Eu corria contra o tempo como se precisasse alcançar um grande tesouro. De repente, os pingos mais densos da chuva que começava a cair, tocavam o meu rosto com uma força descomunal. Os pingos logo se misturaram às lágrimas que comecei a derramar enquanto um martírio profundo me abraçava bem forte. Eu amava a GG e agora eu tinha certeza disso e não podia mais esconder aquele sentimento tão bonito nem mesmo de mim. Oh bicho mizinguento era eu! Arrastando-me tardio pela boyzinha que sempre me amou.
A chuva logo apertou. O meu corpo desfalecia. Pensei que não chegaria ao meu destino final, mas, mesmo bambo, cruzei a vertente até ver a casa dela.
Agora já não corria mais. Do meio da rua, na chuvarada, como um boy sem teto jogado aos ventos, vi Charlote na janela do seu quarto segurando o boneco de pelúcia que tanto lhe fazia sorrir. Dessa vez ela parecia pensativa. Usava o vestido azul com detalhes em preto que lhe deixava ainda mais bonita. Como pude ser um bicho tão idiota por ouvir as grosserias da galera contra Charlote e assentir com tudo o que falavam? Chego a pensar que fui desprezível.
Eu estava lá, paradinho, de frente para minha boyzinha, que entre um pensamento e outro, ouviu o grito de alguém que já não se preocupava mais com o que os outros pensariam. Como diziam num dos ditados mais populares do povo, antes tarde do que nunca, né?
— Ei! Charlote!

— Allan? – Acho que ela não entendeu muito o que acontecia, ficou com aquela cara de abobalhada olhando para mim e não disse mais nada.
— Charlote, eu… Na hora eu travei e não consegui me expressar. Os olhos dela estavam enormes e molhados. Parecia que já sabia o motivo de me ver plantado à sua frente enquanto a chuva caía. Parecíamos dois abobalhados, sem o que dizer um ao outro, foi quando a chuva apertou ainda mais.
— Saí da chuva boy – ela se afastou da janela e eu pude ouvir seus passos longos e apressados vindo em minha direção. Abriu a porta e me chamou para entrar.
— Não Charlote, não posso — fui logo falando antes que ela me colocasse à força para dentro de casa – Painho não pode saber que estou por aqui, só vim porque… porque precisava te falar umas coisas, visse… é que…

— Não pode? – Ela se aproximou de mim ainda segurando o boneco de pelúcia, que logo se encharcou naquela chuva toda, mas ela parecia não se importar – Falar o que? – Eu continuava calado, olhando bem nos seus olhos – A pois, fale logo, está me deixando avexada, visse.
— Saia da chuva sua doida, está se molhando toda, não está vendo? Venha comigo, oxê!
A puxei pelos braços levando-a até os fundos pelo estreito corredor ao lado da casa. Não havia como não se deleitar naquele momento tão infanto-juvenil. Acho que a dona Lúcia nos viu pela segunda janela. Ou talvez tenha escutado os rinchados serenes que dávamos feito duas crianças bobas. Antes de chegarmos na pequena garagem sem carro, ela me puxou contra a direção que eu ia impedindo que eu continuasse levando-a.
Ali, naquele cantinho que Jacob usava para enrolar as linhas de suas arraias, Charlote e eu nos abraçamos, ainda na chuva, marcando um momento que seria inesquecível para nós dois.
— Eu também tenho uma coisa para te dizer – ela sussurrou no meu ouvido, me arrepiei. Ela se afastou, fechou os olhos, suspirou uma, duas vezes e sem me olhar disse – Eu te amo Allan Gesser, e não é esse amor de amigos que você deve está pensando, eu te amo mesmo, te amo de verdade, visse?
Aquilo não me abalou. Eu já sabia, sempre soube. Charlote era louca por mim. Sempre suportou todas as arretações do povo porque nunca quis magoar- me magoar. Eles eram meus amigos, assim que eu os via. Não sei se era a chuva ou lágrimas que escorriam pelo rosto dela, mas sabia que naquele instante se eu não levasse a minha boca na direção da dela, ela levaria a dela na direção da minha. Eu também a amava e agora, horas antes da despedida, ela precisava ouvir isso de mim.
— Charlote, eu também te amo. Eu te amo e não quero ir embora daqui. Não quero te deixar para trás. Eu não vou conseguir ficar longe de você. Vou fugir… vou me esconder, mas… daqui de Noronha eu não saio!
Ela ficou parada me olhando com aqueles olhos arregalados brilhantes que só, abria a boca para dizer alguma coisa, ela queria me dizer alguma coisa, mas encerrou qualquer intenção quando colou os seus lábios nos meus. Então a minha mão se perdeu em seus cabelos. Queria segurá-la inteiramente, ao mesmo tempo, para sempre. E apesar de estar em seus braços, tudo parecia mais um sonho, e eu não acreditava nisso, e temia que isso acabasse, de um modo tão rápido e isso me causaria dor e agonia. Eu queria decorar cada momento. Queria lembrar seu cheiro e a textura da sua pele macia. Ela segurou o meu rosto em uma das mãos se entregando totalmente naquele beijo. Nessa hora eu quis que tudo fosse diferente, que eu pudesse ter percebido isso antes, que pudesse tê-la beijado antes. Antes dessa bagunça só, que estava minha vida, mas não podia. Agora eu só queria fugir para qualquer lugar daquela ilha que não fosse longe de Charlote.
Então ela se afastou, abaixou a cabeça, parecia chorar.
— E a pois – parecia azoretada – o que a gente faz agora?
— Não sei, visse. Não sei mesmo. Mas tenho que ser ajuizado o suficiente para tomar uma decisão. Mesmo que não seja a decisão certa, terei de tomar. Eu errei por muito tempo negando esse sentimento, mas agora, tenho certeza dele. Não quero magoar ninguém. Nem mainha, nem painho e nem você. Mas também não vou poder agradar os dois lados de uma vez só — nos achegamos para a outra parte da garagem. — Tome, fique com isso — tirei minha camisa e entreguei a ela.
— Não sei o que vai acontecer daqui para a frente, mas quero que guarde isso para sempre com você. Promete?
Ela pegou a camisa com tanta ternura, apertando contra o peito, que me deixou mais aperreado com aquela situação.
— Eu prometo – ela disse – mas, me promete que não vai me esquecer e que vai voltar um dia para me ver.
Quando fui responder, dona Lúcia apareceu pela porta dos fundos, parecia zangada com o que via, apesar de já estar bem-acostumada a nos ver grudados um ao outro, daquela vez, o instinto de mãe parece que falou bem mais alto do que a simples visão.
— Oxe, Oxe, Oxe… posso saber o que vocês dois fazem aqui atrás sozinhos nesses cochichos? E que diabos é isso Charlote, pegando essa chuva à toa? Deixe teu pai saber disso, visse, menina!
— Não é culpa dela, dona Lúcia… eu só…
— E tu, não era para estar na tua casa uma hora dessas Allan? O que viestes fazer aqui, hein? Hoje não foi o dia de sua mudança?
— Era não mainha, ainda '‘é’'! — Charlote estava pesarosa.
— Eu só vim me despedir de Charlote, dona Lúcia. Eu já ia entrar para falar com a senhora também.
— A pois – ela continuou – Já se despediram, agora vamos sair dessa chuva Charlote. E você Allan – sua voz ficou pesada – Vá se embora boy, vá porque essa despedida é difícil demais, visse.
Ela me fez lembrar de muitos momentos bons que passei ali, mas agora, eu precisava abraçar também a mulher que sempre me recebeu tão bem em sua casa e sempre confiou em mim. Diacho, que dia complicado, visse!
— Dona Lúcia, antes de ir quero lhe dar um abraço também. A senhora sempre foi muito gentil ao me receber aqui — olhei para a Charlote e rimos. Na verdade, lembramos que nem '‘sempre’' era assim. Dona Lúcia ficava zangada quando subíamos para o segundo andar e entrávamos na sala de confecção das roupas que ela produzia. Uma vez, coloquei o vestido da senhorinha ''Jarutiba'' e a imitei. Seus passos mancos e lábios caídos até que deram uma boa paródia. Charlote ainda se lembrava disso.
Então, meio que sem jeito eu a abracei e ela pareceu emocionada, mas foi uma coisa bem rápida, sabe, de alguém que não gosta muito de prolongar a prosa. Olhou para mim com os olhos marejados, depois olhou para Charlote, cruzou os braços e ficou que nem uma árvore plantada bem no meio da gente. No fundo eu queria beijar Charlote mais uma vez e dizer para ela tudo o que eu ainda tinha para dizer, mas não teve jeito, dona Lúcia me olhava avexada, e eu sabia que ela desconfiava de alguma coisa, ah eu sabia.
— Então é isso, tchau Charlote, a gente se vê… quem sabe por aí, qualquer hora, né? — Engoli saliva e percebi que minha voz agora estava trêmula. Os olhos? Ah, esses já estavam criando um monte de lágrimas, se eu piscasse, elas cairiam face abaixo. Virei-me rápido, abaixei a cabeça e fui saindo debaixo da mesma chuva que marcou o meu último momento com Charlote.
Mas ela pareceu não se importar com dona Lúcia, mal havia caminhado para longe e ouvir seus passos largos e pesados vindo rapidamente em direção a mim. Quando me virei ela me abraçou mais uma vez.
—Diacho – ela falou isso tão rápido que eu até achei graça – Você não pode ir embora assim, visse? A gente se vê? – Ela se afastou e olhou para mim – Eu vou te esperar o tempo que for preciso, entendeu Allan? O tempo que for preciso, e quando você voltar eu vou está bem aqui te esperando e aí de você se não vier, oxê.
— Está bom, eu vou lembrar disso. Eu prometo que vou voltar.
Voltei correndo para casa e depois daquela tarde só via Charlote através das minhas lembranças, que com o passar dos anos, foram se apagando cada vez mais até não sobrar quase nada. O contato foi ficando cada vez menor e os afazeres do cotidiano fizeram com que eu pensasse menos em tudo o que ficou em Noronha. Entretanto, uma das coisas que ainda não me esqueci, foi justamente daqueles momentos no dia da despedida. Enquanto me recordo, os cochichos de Charlote com a mãe quando saí pelo portão me fazem rir e chorar de saudades. Diacho, o que será que aconteceu por lá depois que eu fui embora?